quarta-feira, maio 24

Conhecimento empírico versus aprofundamento técnico

O homem pré-histórico sentia sede e então se dirigia ao rio, onde enfiava o rosto na água. Não era a melhor forma, pois enquanto estava com o rosto enfiado no rio, ele estava sujeito a toda espécie de predadores. Um dia o homem pré-histórico percebeu que poderia usar a mão para levar a água até a boca. Foi uma melhora, pois ele podia observar o ambiente e ficava um pouco menos vulnerável a predadores, porém para se satisfazer ele ficava um tempo maior à beira do rio devido a pouca quantidade de água que conseguia levar até a boca com uma mão. Ainda não era a melhor forma. Passado algum tempo ele percebeu que usando as duas mãos em forma de concha ele poderia levar mais água a boca, o que fazia com que ele ficasse menos tempo na beira do rio. Mesmo assim aquela ainda não era a melhor forma, pois durante algum tempo ele ficava com os braços totalmente ocupados e sem a possibilidade de se defender ou atacar possíveis predadores. Até que passado mais algum tempo – e quando digo tempo, pense em centenas ou até milhares de anos - ele percebeu que poderia reproduzir aquele formato de concha se utilizando dos recursos naturais disponíveis. Foi quando surgiu o primeiro copo. E daí em diante surgiu balde, a panela e uma infinidade de outros objetos que partem do mesmo principio.

Esta é a historia da técnica de se fazer recipientes para beber água. Como se pode ver, ela foi se aperfeiçoando com o tempo, conforme a necessidade de quem a usou até chegar a um conceito quase imutável: o copo.
Todas as técnicas da humanidade se desenvolvem assim, através de acertos e erros e do empilhamento de experiências que resultam em um aperfeiçoamento.
Apegar-se ao saber empírico em detrimento do estudo e aprofundamento na técnica, me parece ser optar por começar enfiando a cara no rio.
Muitos preferem o caminho empírico por considerarem a técnica uma prisão dogmática ou ainda uma forma de pensar conservadora que precisa ser “revolucionada”. Bem, a técnica não é um conjunto de leis imutáveis, é ao contrario dinâmica e está a todo o momento agregando e substituindo “modus” conforme as necessidades da época e do lugar. Veja como exemplo o prólogo, algo quase em desuso no teatro contemporâneo: Ele nasce no teatro grego e sobrevive intocado quase que por um milênio e meio. De repente, não mais que de repente, surge o teatro Elisabetano, com sua platéia que se assemelha ao que é hoje uma torcida de futebol (cheio de homens barulhentos, comendo e bebendo à vontade). É então que começa a derrocada do prólogo. As peças tinham que prender o público desde sua primeira cena, elas tinham que ganhar o respeito e simpatia do público logo cedo ou estavam fadadas a serem um outro tipo de diversão – sim, é nesta época que nascem as vaias e a famosa prática de jogar frutas e legumes nos artistas de baixa qualidade -. As famosas primeiras cenas de Shakespeare não são acidentais.

Quanto à questão "revolução "o que tenho a dizer é muito simples. Para revolucionar o copo você deve primeiro conhecer toda a sorte de técnicas que se tem para fazer um copo e como chegaram a tal ponto, pois senão correrá o sério risco de enfiar a cara no rio achando que inventou algo novo. O único exemplo de revolução na técnica dramaturgica que conheço chama-se “Teatro Épico” (embora outros nomes lhe sejam dados), e foi criado por Bertold Brecht, dramaturgo que estudou a fundo o sistema “tradicional”, para só então criar um novo sistema que servia a suas convicções e negava o “tradicional”.
Portanto, nada impede que o copo seja revolucionado, mas antes procure conhecer a fundo toda a gama de copos já inventados para não correr o risco de achar que criou algo novo que na verdade já pode estar sendo usado a mais de 20 séculos. Conheça a técnica e então você será capaz de fazer o “seu” melhor copo.

quinta-feira, maio 11

Teatro de dramaturgo é o caminho para um teatro “com” dramaturgo?

Responda rápido. Era o teatro de Shakespeare um teatro de dramaturgo? Shakespeare escrevia as peças, dirigia os atores e também reservava para si alguma personagem. Logo era um teatro de dramaturgo, visto que tudo partia da dramaturgia. Ou não é bem assim? Como se sabe, Shakespeare antes de se tornar dramaturgo foi também ator. Mas talvez o que seja marcante para definir qual era o teatro de Shakespeare seja a convivência e aprendizado que teve com Christopher Marlowe, este sim “apenas” dramaturgo. Para findar esta introdução, afirmo que prefiro acreditar que o teatro de Shakespeare é o genial teatro total (ator, encenador, dramaturgo) de um homem só. Porém alerto que acredito que isto é para gênios.

No século XX começa o reino dos encenadores. Em sua origem este reino advoga em prol do teatro total. O teatro americano, ainda hoje, é calcado numa estrutura que privilegia todas as etapas do fazer teatral desde a dramaturgia até a atuação. Porém, lá pelos anos de 1930 começa a surgir o teatro de encenador. O teatro de encenador tem como característica as experimentações estéticas em detrimento de uma dramaturgia estabelecida. No decorrer do século acaba por dominar a cena também o teatro de ator, teatro este que tem como característica as experimentações do ator em detrimento das experimentações estéticas de um diretor ou ainda das idéias de um dramaturgo.

Na verdade não tenho nada contra o teatro de diretor ou o teatro de ator. Admiro vários representantes de ambos os teatros, tanto no Brasil quanto no mundo. Porém, o meu desejo enquanto artista teatral sempre foi o de executar um teatro total.

Na atual cena teatral paulistana -não posso me comprometer com a cena nacional-, existem vários representantes do teatro de ator e do teatro de diretor (este é o que verdadeiramente domina a cena), temos também o teatro de grupo (teatro este que muita vezes trabalha no processo colaborativo) e agora recentemente foi inaugurado o teatro de dramaturgo, vide Cia. Dos Dramaturgos fundada em 2003/2004.

O SuperNova nasceu com a proposta de “teatro total”. Seria um teatro que começando pela dramaturgia passaria por todas as outras demandas. Em nosso primeiro trabalho foi feita a seleção de diretores e atores, todos eles alheios ao processo dramaturgico. Entretanto, uma grande dificuldade de homogeneização de proposta e enquadramento de filosofia foi encontrada. Existem problemas que advém do vicio cultural do teatro local.

Algumas vontades idealizadas pelo SuperNova mostraram-se de difícil execução prática. Ao menos nesta primeira empreitada a sorte do encontro (pessoa certa, momento certo) não nos abençoou.
Acredito que repensar as vontades seja inevitável.

Mas para finalizar, a minha questão é a seguinte. Devemos insistir na busca do teatro total, mesmo sabendo que este é de difícil execução devido a problemas culturais e de “sorte”, ou apostar nossos esforços no filão aberto pela Cia. Dos Dramaturgos, o teatro de dramaturgo? Será este teatro “de” dramaturgo o caminho para a real inclusão e absorção de dramaturgos e da dramaturgia pelo sistema cultural?

Estou realmente inclinado a pensar na segunda possibilidade. Entretanto pensando que esta possibilidade seja apenas uma etapa para a volta do “teatro total”, teatro este que considere todas as etapas, sem queimas funções.

quarta-feira, maio 3

Shakespeare e a impossibilidade do acordo em “O Mercador de Veneza”

Publicado originalmente no blog Infinito Particular

Na foto: Al Pacino, Jeremy Irons, Joseph Fiennes e Lynn Collins. Fonte: Divulgação do filme "O mercador de Veneza (2005)"

A obra de Shakespeare é inquestionavelmente a que mais se aproxima da essência humana em seus temas. Ciúme, amor, preconceito, ambição, maldade e muitas outras características humanas são de forma magistral representadas na obra do dramaturgo inglês.
Em “O Mercador de Veneza” Shakespeare aborda a “impossibilidade do acordo”. É afinal o ser humano capaz de honrar acima de todas as coisas seus acordos, seus contratos, suas leis?
Sempre estamos achando caminhos à margem do acordo, justificáveis, porém não menos diferentes do plano original.

Na prática podemos experimentar a mesma coisa quando tentamos formalizar um grupo de objetivos comuns. Com o decorrer do processo o grupo se dispersa ou acaba travando batalhas internas por interesses individuais (vide os partidos políticos, grupos musicais, etc.).
A dificuldade de encontrar pessoas com objetivos comuns e capacidade de honrar a um acordo comum é enorme. Muitas vezes os objetivos iniciais e coletivos são comuns, porém depois de certo tempo, com o sucesso ou a elevação de nível pessoal e/ou coletivo, acabam por se tornar as metas pessoais distintas umas das outras.

Em “O Mercador de Veneza” existem vários acordos a cumprir. O principal é entre o Mercador Judeu (espécie de empresário de empréstimos no séc. XVI) e o comerciante Veneziano, mas existem ainda os acordos entre a filha e o pai, a filha e o amante, entre o homem e seu deus e sua religião, entre os amigos, entre os recém casados... Enfim, no decorrer da peça vai-se ficando clara a impossibilidade de cumprir verdadeiramente um acordo. Sejam por brechas “legais” no acordo, acontecimentos de “força maior”, ou ainda “remorso”, todos os acordos não são “verdadeiramente executados como originalmente planejados”.
É claro que com sua inteligência magistral Shakespeare nos mostra que é inútil levar tudo “a ferro e fogo”, e também nos deixa um alerta sobre a atenção às minúcias quando se fechar um acordo.

Na vida prática e real fica a minha impressão de que qualquer acordo depende da “sorte do encontro”. Encontrar a pessoa certa, com os objetivos certos no momento certo. Só assim se constroem trabalhos de longo prazo e com resultado sólido, seja em arte, seja em amor, seja em economia e política.


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